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Conto: O Cometa Heidi


A primeira vez que avistei Heidi foi consequência de um dia muito importante em que ela não conseguiu dormir.
Pulou da cama, tomou banho, se vestiu, desceu as escadas, comeu e saiu de casa tão rápido quanto possível para um bípede.
A velha nave geracional ainda acordava enquanto ela deslizava sobre os patins que sua bisavó trouxera do planeta natal “um dia vai cair dessa sucata e quebrar o focinho” sua mãe costumava reclamar. “São relíquias” ela sempre respondia “e sou muito boa. Vou levá-los comigo quando partir.” A vida toda sonhou com o Dia da Escolha. Agradecia aos seus antepassados por não terem simplesmente imposto suas obrigações aos que viriam depois.
Chegando ao pátio central, sentou-se empolgada na primeira fileira e esperou a cerimônia começar, conseguindo finalmente dormir um pouco.
- E assim, - acordou de sobressalto com o capitão já a um terço do discurso - no ano em que completa dezoito anos, todo sordae nascido na Resilient tem o direito de embarcar sozinho numa jornada por outros mundos e decidir onde ficará no universo.
“Uma nave, rápida, armamento básico. E seguir só pelo espaço profundo” pensava empolgada na fila, incapaz de esconder o sorriso. Imaginou-se voando por uma nebulosa ou fazendo manobras em um campo de asteroides.
- Torat, Heidi - voltou a realidade enquanto o capitão colocava o distintivo de permissão de embarque em sua roupa - Escolha seu destino - repetiu o que disse a todos os candidatos.
Ela desceu feliz do palco, mas de repente lhe ocorreu algo inédito ao pensar sobre isso. O medo percorreu sua coluna como uma cobra peçonhenta. Estava apavorada como conceito de infinito. Voltou para casa andando e evitando olhar para as grandes janelas em todo lugar por onde o cosmos adentrava.
Mas não podia desistir de algo tão importante, mesmo que precisasse tomar sorvete e choramingar para sua mãe sobre como o espaço é grande e assustador. Precisou de uma semana para se sentir pronta. A maioria demora um ano, ou nem vai.
Depois de tudo checado e das despedidas feitas, ela olhou para o painel da navezinha e para a vastidão à sua frente. O medo nunca saiu do seu lado. O coração palpitava enérgico. Respirou fundo e deu a partida.
Agora estava por conta própria.
Vagou por aí durante meses. Conheceu mundos fantásticos e gente fascinante de diversas espécies, visitou inclusive Urnis, o planeta natal e sentiu uma mistura única de familiaridade e estranhamento. Viu oceanos, florestas e pores-do-sol pela primeira vez. Viveu alegrias e tragédias, amores e guerras. Tudo que a vida pode oferecer a um mortal. E um dia me encontrou.
Eu sou Cron, tenho pouco mais de 10 bilhões de anos, sou uma grande esfera roxa, reflito neste espectro a luz à minha volta e não recebo muitas visitas.
- Olá - saudei-a através do rádio da nave, depois de aprender a língua do computador, e a surpresa derrubou-a da cadeira.
- Oi, quem fala? - levantou depressa checando os sensores.
- Eu sou Cron.
- Eu sou Heidi. Onde você está? - perguntou confusa.
- Bem aqui.
- Está camuflado, ou talvez sozinho à deriva? Não capto ninguém aqui.
- Você me orbita.
Outro susto, quase derrubou-a novamente.
- Você é…?!
- Eu sou Cron.
- Entendo...
Ela aceitou bem rápido os fatos e conversamos longamente.
Era um diálogo tão íntimo, tão verdadeiro e profundo que fiquei totalmente envolvido.
Ela tinha muitas dúvidas e hipóteses sobre destino e o tamanho do universo e pessoas de todos os tamanhos e tempos, mas só fui capaz de refletir sobre elas. Acaba que, comparado àquela mortal ainda no início de sua vida, eu era muito simples.
Eu nunca havia notado como era rica a vida desses seres como Heidi. Tão pequenos, tão efêmeros e imensamente complexos. Suas curtas caminhadas densamente preenchidas por momentos e emoções e ligações uns com os outros. Nascidos quase ocos podem crescer completos.
- Até agora eu achei que minha consciência era a capacidade do universo observar a si mesmo como ninguém mais conseguia. Mas o jeito que vocês o veem. Tanto em tão pouco tempo. Eu vi éons, Heidi. Vi estrelas nascerem e morrerem. planetas se formarem e gerarem vida. Buracos negros, pulsares, quasares, supernovas… Mas vocês podem ver uma folha caindo, um filhote nascendo, uma flor desabrochando e uma estrela sumindo no horizonte e voltando no outro dia.
- Cron, uma coisa não é nada sem a outra. e nós não somos tão diferentes além da escala. Nós observamos, vivemos, existimos. Somos o universo se contemplando, se vivendo e pensando sobre si mesmo em suas infinitas proporções.
- Um infinito dentro do outro.
- Exatamente…- fez uma pausa inquieta - Quero te agradecer. Conhecer você foi a experiência mais enriquecedora que eu poderia ter.
- Igualmente. Obrigado.
Achei que era comum mortais terem medo de seres como eu, muito tamanho, muita informação, muito tempo... Eu nunca soube se Heidi era extraordinária ou se eu estava enganado a respeito de tantos povos.
Depois ela partiu. Voltou para a Resilient e deu um grande abraço em sua mãe. Ela me disse que agora entendia o valor de viver em uma comunidade e da ligação entre as pessoas, mas que o espaço ainda era muito grande para não ser explorado, e que me visitaria de vez em quando.


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